Escrevi um texto em word, como parte de um livro e publiquei-o aqui como um post. É fáci de perceber que ele não foi escrito aqui como todo os outros, pois ele explica que tenho um blog chamado Querido Leitor, frase que fica meio estranha dentro do próprio blog. Mas é licença poética. O que conte é o gesto e não sua descrição. Vamos lá.
Bookcrossing
Hoje eu liberei um livro. Deixei-o sobre um dos muitos bancos de madeira que ficam no Shopping Center de Águas de São Pedro. Muitos deles estavam ocupados e fiquei constrangida em participar deste movimento pela primeira vez de uma forma pública, notória e bandeirosa.
Em frente aos banheiros havia um par de bancos, perfeitos, vazios, discretos, sem observadores. Tirei o livro da bolsa e deixei-o no cantinho, influenciada pela foto que vi no site da BBC de Londres e que acabei publicando no meu blog, o Querido Leitor, hospedado no endereço queridoleitor.blogspot.com
Além de escrever muito no meu blog, também visito muitos outros blogs e sites da Internet. Desde que a Internet comercial surgiu no Brasil, passei a ser uma adepta e defensora desta nova mídia sem dono, essa infovia global onde se troca de tudo, esse mercado persa do terceiro milênio chamado... Internet, ou como os amantes da Internet gostam de chamar, Rede.
Um dos blogs que mais visito é o da Cora Rónai, o cora.blogspot.com onde encontro muita coisa que me agrada. Não conheço a Cora pessoalmente mas respeito-a como profissional, como ser humano, como mulher. Sinto nela uma dose correta de respeitabilidade com intimidade e um alto grau de seriedade credenciada. Parto do princípio que aquele é um blog confiável e que, se Cora publicou alguma coisa lá, é porque esta coisa é verdadeira. Se não fosse, ela teria investigado e descoberto antes e não teria publicado. Pessoas éticas e de respeito possuem vários firewalls interiores, várias peneiras e só o que é seguro, passa. Salvo exceções, como em tudo.
Foi no blog da Cora que li um post falando do Bookcroosing, um movimento proposto no site de mesmo nome, www.bookcrossing.com , que centraliza de forma ordenada um gesto simples e generoso, o de abandonar um livro em algum lugar deste mundo para que ele seja encontrado, lido e devolvido para a circulação .
Quando li o post, achei a idéia muito boa mas, passou. Não registrei o desejo de participar e me coloquei na posição de observadora. Lembro de não ter nem prestado atenção na origem desta idéia, que só na segunda visita, desta vez pesquisada, compreendi.
Dias e dias depois, comecei a receber muitos emails de spam com a proposta de abandonar um livro no dia onze de setembro de 2003, quando o mundo relembra o ataque às torres gêmeas de nova york, a primeira tragédia mundialmente transmitida ao vivo pela televisão e testemunhada por todos os povos ligados a esta outra rede, a das televisões.
O fato de termos todos assistido juntos, de termos acompanhado aquelas cenas absurdamente reais através de um aparelho onde vemos tanta coisa produzida, foi chocantemente inesquecível e de alguma forma, sempre será assunto para todos os que viveram este momento.
No mesmo instante em que recebi o email, pensei que alguém tivesse lido a idéia no blog da Cora, visitado o site do bookcrossing, juntado tudo e produzido um spam com esta proposta, a de deixar um livro em algum lugar do mundo no dia 11 de setembro.
O spam não propunha a identificação do livro, para acompanhamento posterior de seu paradeiro, como acontece no site do bookcrossing. Para participar do movimento do site você precisa escolher o livro que vai liberar e cadastrá-lo para receber uma numeração, o registro deste livro. Você cadastra o título, o autor, um breve resumo ou texto sobre ele, o lugar onde você vai deixá-lo, do macro para o micro, escolhendo em menus do tipo drop-down o país, o estado, cidade, dia e locais exatos em que você irá abandoná-lo. O livro então fica cadastrado através de um número, que você imediatamente copia na primeira página. A partir daí, o destino deste livro ficará registrado na página http://www.bookcrossing.com/numerodolivro
Com o passar dos dias, os emails propondo esta idéia foram crescendo, sempre sem a menção ao bookcrossing. Cheguei a publicar vários posts tentando resgatar a autoria do movimento mas as pessoas concluíram que a autoria era menos importante do que a proposta.
Na mesma semana, o email chegou à redação do caderno Ilustrada do jornal Folha de São Paulo e o repórter Rogério Eduardo Alves fez uma matéria sobre o movimento. A equipe de reportagem abandonou alguns livros no metrô de São Paulo e fotografou o momento em que foram pegos.
A reportagem foi publicada em papel e em versão online. Li apenas a versão online, com duas páginas diferentes, uma mais profunda e outra, cheia de pares de aspas, citando uma suposta "autora" desta idéia proposta nos emails de spam.
Decidi então experimentar o gesto. Na noite de 05 de setembro, uma sexta-feira, escolhi um dos livros que estavam na prateleira de uma pequena estante aqui na chácara, em Águas de São Pedro, o menor município do Brasil e o primeiro em qualidade de vida, no interior de São Paulo e cadastrei-o no site do bookcrossing.
As opções eram poucas. Alguns livros estavam fora de cogitação para serem liberados. Tentei encontrar algum critério para selecionar o finalista entre os candidatos e optei pelo texto mais simples, mais curto, mais leve. O vencedor foi "Minhas Vidas" (passadas a limpo), de Mário Prata, uma ficção onde o autor fala de algumas de suas supostas vidas passadas.
Na verdade, eu não tinha lido o livro e fiquei muito constrangida, me sentindo uma fraude, na hora de escrever uma pequena resenha sobre ele. Minha ética me obrigou a ler pelo menos algumas das vidas, para não abandonar um livro com o qual não tive nenhuma intimidade. Achei o texto muito simpático e fiquei muito satisfeita com a sensação de ter feito a escolha certa.
Cadastrar o livro de Mário Prata foi muito fácil assim como foi fácil imaginar qual a abertura da dedicatória que farei em todos os livros que liberarei ao mundo. Começará sempre com...Querido Leitor.
Este começou com Caro Leitor e só depois que a percepção óbvia me possuiu é que adicionei o Querido Leitor ao lado, logo depois de uma vírgula.
A dedicatória ficou mais ou menos assim:
Caro leitor, querido leitor,
Este livro é seu. Foi você que o encontrou.
Depois de lê-lo, visite o site www.bookcrossing.com/xxxxxx
e liberte-o para o mundo.
Acho que não deveria, mas escrevi um email de contato. Mas de uma forma tão ininteligível que nem eu seria capaz de reconhecê-lo.
Planejei liberá-lo hoje e assim o fiz, depois de ler mais algumas páginas na rede, desta vez, a rede de balanço, pendurada entre duas colunas no alpendre.
Assim que deixei o livro discretamente sobre o banco, entrei numa loja de guloseimas. Foi o tempo de comprar goma de mascar, pirulitos, balas mastigáveis e pagar a conta. Ao sair da loja, a poucos metros do banco, olhei para ele e vi que estava vazio. O livro não estava mais lá.
Olhei ao redor, sem demonstrar minha intenção curiosa e vi, de costas para mim, num outro banco, um rapaz. De barba e chapéu, sentado, de pernas cruzadas, lendo o livro.
Senti uma coisa boa, cujo nome ainda não sei. Quando a gente dá nome para um sentimento ele entra dentro da memória. Dar nome, é dar um enter na informação.
Nesse momento, meu filho veio me pedir um brinquedo. Entramos numa outra loja, compramos três ou quatro bobagens de plástico. Ao sair, já de longe, na porta do pequeno shopping vi que o rapaz ainda está lá, entretido com a leitura.
Não sei se isso vai mudar meu karma, mas sei que nesta vida, posso dizer que libertei Mario Prata para o mundo.
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