1/02/2004

Um colar de contas, uma coluna de notas

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Decidi fazer um post composto por pequenas notinhas, aqueles bloquinhos de letras separados por grafismos e que, juntos, compõem uma coluna. Bons e maus colunistas sobrevivem do mesmo formato, portanto, ele dever ser bom. Sucesso é um troféu outorgado pela maioria e a maioria das pessoas não tem paciência (ou treino) para ler textos longos. Assim, aqui estou eu, em cápsulas, após as principais refeições.

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Fui andar na praia de Juquei. Chovia e muitos outros turistas que ficaram enjaulados ontem passeavam soltos sob os pingos. Foi um festival de coberturas pra cabeça. Gente de chapéu, de boné, de gorro do moleton levantado, de sombrinha, guarda-chuva e guarda-sol. Descobri que quando se está descalço, de sunga e boné, a cabeça é o único lugar decente para se guardar a chave do carro.

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Passear na praia é sempre um exercício para a inveja, que cobiça desde os corpos perfeitos de alguns banhistas até o bens imóveis dos felizardos que têm mansões lindas à beira-mar. Dá vontade de ficar supondo histórias de como aquelas pessoas conseguiram juntar tanto dinheiro para ter uma propriedade pé-na-areia com helicóptero estacionado no gramado. O problema é ... o que fazer com o piloto enquanto o bicho está parado? Eles hospedam o piloto em casa? Têm um quarto só pra ele? Ele vai embora de barquinho e quando você o solicita ele volta voando? Pelo menos o piloto não deve ter problema de dormir na cama de cima do beliche.

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Barra do Una tem um armazén minúsculo e quente, que só poderia ser enquadrado no quesito mercado se pudéssemos chamá-lo de super-micro-mercadinho. A outra opção é o mercado propriamente dito que a cada estação, consegue ampliar suas dependências graças ao princípio da ultra-hiper-mais-valia aplicada aos preços de todos os produtos, das miudezas às mundanidades. Com o objetivo firme de fazer uma salada de acelga com abacaxi em cubinhos e uvas passas brancas, entrei no supermercado e peguei uma cestinha de compras, medida que nos dá mais noção do peso que teremos que carregar à pé na volta para casa do que o carrinho tradicional. As filas eram imensas. E só quando cheguei perto do caixa, percebi uma coisa chata pra chuchu: esqueci o abacaxi. É isso que dá ficar pensando abobrinha.

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Depois de caminhar horas em pé, fiquei outras horas em pé na cozinha, desossando o perú do ano novo, com requintes de crueldade. Coloquei o peru numa forma e separei três compartimentos, um pra carnes brancas, um pra carnes escuras e um pro cachorro da faxineira. A carne branca eu servi no almoço. A carne escura eu vou usar para fazer uma torta. A parte do cachorro eu guardei no freezer. É surpresa.

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Minha filha adorou a carne do perú desfiada e refogada. O mais incrível é que o molho continha tudo o que criança odeia, como alho, cebola, pimentão vermelho e salsinha, que as crianças chamam de 'aquelas coisinhas verdes'. Se você picar tudo bem pequeninho, como se fosse Demócrito postulando a indivisibilidade do átomo, as coisas detestáveis desaparecem e tudo o que resta é o prazer de ver as crianças elogiando sua comida, enquanto molham a quinta fatia de pão de forma no molho do perú.

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Um dos maiores desafios criativos de uma dona de casa é justamente aproveitar os left-overs, uma maneira dandi, pedante e anglófila de se referir às sobras. Sobras e restos são palavras muito indigestas para serem aplicadas ao alimento que nos nutre, daí a dificuldade de tocar no assunto. Mas comigo é assim, Lavoisier na cabeça. O pão que sobra vira no torrada e depois farinha de rosca. Isso se não virar rabanada frita antes. O panetone, depois de dez idas e vindas à mesa, sempre intocado, virou torradinha doce, uma delícia com café. Até a meia garrafa de champagne do reveillon deu a pinta no arroz branco com passas. A lentilha ainda está sob custódia e se tiver bom comportamente na geladeira vai ser transmutada numa espécie de virado à baixada, equivalente litorâneo do virado à paulista feito com feijão e farinha. Cozinhar também é um ato ecológico.

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Um dos maiores prazeres de uma dona de casa é encerrar o expediente da cozinha. Quando acabamos de enxugar a pia e de limpar o fogão, vendo que tudo já está limpo e no seu lugar, fechamos todos os lixinhos, embalamos os sacos, colocamos o lixo do lado de fora do lar e, voilà, estamos prontas para tirar o avental e depor a palha de aço. A gente tampa o fogão e coloca sobre ele um pano de louça. O pano parece pequeno mas tem a força simbólica das cortinas do teatro. Fechou, fechou. O espetáculo estava muito bom mas acabou. É hora da galera ir embora porque o elenco tem que escovar os dentes e tomar banho.

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Sou péssima lavando roupas. Nunca tive talento. As manchas não gostam de mim e querem provar que podem ficar onde estão independente da minha ira no tanque. Talvez por trabalhar a vida toda com as mãos, escrevendo, sinto que o tanque, o sabão e a roupa pesada são inimigos dos meus dez instrumentos de trabalho. Mesmo sem talento, tenho que fazer o serviço. Lavei o que pude e agora, uma pilha de roupas me espera. É hora de ligar o ferro elétrico e pensar que na vida, tudo passa.
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